O BHAZ ouviu duas advogadas, que afirmaram que as falas são perigosas, por conta da naturalização da violência. Os principais pontos do discurso do governador foram separados em tópicos, com explicações logo abaixo de cada trecho.
- “Se nós pegarmos a história da nossa raça, fica muito claro que nós somos uma raça que sempre gostou de oprimir aquele que é diferente. Pela sua raça, pela sua cor, pela sua nacionalidade e por aí vai. A questão da opressão contra a mulher está dentro desse contexto e ela extrapola classes sociais”, começou o governador.
Para Paola Alcântara, advogada criminalista e vice-presidente da comissão da advocacia criminal da OAB-MG, a fala sobre “desenvolvimento de opressão e tendência violenta de tudo que é diferente do nosso esteriótipo mais comum é coerente, do ponto de vista histórico”.
“Contudo, confundir o que já aconteceu, passou por transformações e ainda é tão necessário debater, inferioriza toda luta. Basta ver o que aconteceu no domingo, o 8M demonstrou ainda mais necessidade urgente de debatermos temas relacionados aos direitos das mulheres”, continua a advogada.
Jéssica Freitas, advogada criminalista e mestra em processo penal pela UFMG, complementa que “o termo ‘raça’ é absolutamente inadequado”. “Somos uma espécie e a própria classificação em raças já serviu – e ainda serve – como instrumento de opressão. O termo ainda é utilizado em análises sociológicas para tratar de questões específicas, como a identificação das estruturas racistas e opressões dirigidas à população negra”.
- “Nós temos de ter ferramentas que inibam isso que poderíamos chamar meio que um instinto natural do ser humano. Estamos, no meu entender, nós aqui do ocidente, bem a frente daqueles países, principalmente aqueles onde a religião muçulmana prevalece, e onde as mulheres ainda são quase que consideradas cidadãs de segunda categoria”, disse o governador em outro trecho do discurso.
Segundo Paola Alcântara, o que o governador chama de instinto humano é muito perigoso. “Pois naturaliza e humaniza a violência e agressão todos grupos de minoria, a fala de modo geral, pode dar entender que é comum, aceitável e possível que ações assim aconteçam. Desta forma, sua fala pode ser entendida por homens que suas ações violentas são naturais e a aceitáveis, até mesmo necessárias”, começa.
“Ao meu ver, o erro está justamente aí, em inferiorizar e diminuir o sentimento do outro em relação situação da qual não se tem conhecimento de causa. Não procurar estudar e entender necessidade de pautarmos violência contra mulher como problema estrutural e do patriarcado como origem e que precisa ser mudado”, complementa a advogada.
Jéssica Freitas continua e explica que “ao contrário do que diz Zema, a violência contra a mulher não é algo natural ou instintivo, mas, sim, naturalizado dentro de uma sociedade estruturalmente patriarcal. Se os homens agem e pensam assim (e veja que essa fala diz muito sobre o que pensa nosso governador) não é por razões biológicas, mas sim culturais. Porque é culturalmente aceito que mulheres sejam objeto de dominação masculina, sejam tratadas de forma diferenciada, agredidas e silenciadas”.
- Não é porque biologicamente os homens são mais fortes que lhes é dado o direito de agredi-las. Talvez a origem da agressão esteja aí, mas temos de criar essas ferramentas que inibam e, principalmente, punir exemplarmente quem faz isso. É uma grande injustiça. É, principalmente, esclarecimentos. Você tem direitos, não tem que ter medo, você é uma pessoa que merece respeito. Isso é que eu vejo que essa ferramenta está tentando criar e é importantíssima para nós avançarmos, darmos mais um passo.
A advogada Paola Alcântara comenta que, no caso de crimes em âmbito de violência doméstica, “temos índices alarmantes de feminicídio, pesquisas indicam que por dia, 180 mulheres (incluindo adolescentes) são vítimas de abusos sexuais, a cada 2 minutos uma mulher é vítima de violência doméstica no Brasil”.
A especialista continua e diz que temos obrigação moral, social e política de, “além de medidas afirmativas de proteção, conscientizar o quão grave e preocupante é pensamento neste sentido”. “Necessidade de mudança de mentalidade masculina é urgente, e o governador, na posição em que ocupa, inclusive de homem branco, hétero e no lugar de poder, tem dever de contribuir para desenvolvimento de pensamento crítico. Não diminuir, inferiorizar ou humanizar algo que tanto vem sendo diversas mulheres vítimas e pauta de diversos movimentos para construção de sociedade machista, não romantizar o que é crime”, explica.
A advogada completa dizendo que a criação do aplicativo é importante, assim como medidas protetivas, mas que, sozinhos, não mudarão a realidade.
Jéssica Freitas diz ainda que “argumentos de cunho biológico são falaciosos e opressores, por tentarem conferir neutralidade ideológica a uma posição bem demarcada. A escravidão e o nazismo também se utilizaram de recursos pseudocientíficos para justificar seus atos de barbaridade”.
“É verdade que a violência de gênero extrapola classes sociais. Mas, no Brasil, nenhuma opressão é imune a um recorte de classe e raça. A dependência econômica das mulheres em situação de vulnerabilidade econômica e social, em grande parte mulheres negras, as torna um alvo mais constante e mais silenciado, o que demanda atenção diferenciada e políticas voltadas especificamente para esse público. Da mesma forma, as mulheres transexuais precisam de uma atenção específica, embora o governador sequer as tenha mencionado em seu discurso”, continua Jéssica Freitas.
“Por fim, sabe-se que ‘punições exemplares’ são ineficazes para coibir a prática de crimes e, ainda mais, quando se trata de violência de gênero. O sistema penal reproduz e amplifica as opressões e, por isso, é preciso desenvolver pesquisas sérias e focar em medidas não-penais para prevenção e responsabilização dos agressores”, completa a advogada.
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