O meu quarto de hotel tem vista para a Baía de São Francisco. À esquerda está a Golden Gate, ponte vermelha que é um dos símbolos da cidade, à direita a Bay Bridge, que acho até mais bonita mas que não tem o mesmo prestígio. Bem à frente estão a pirâmide alta e anoréxica do Transamerica Building, um pouco além a Coit Tower e, já na água, uma ilhota com algumas construções que, até 1963, funcionou como prisão de segurança máxima. Chama-se Alcatraz.
A fama é maior do que a ilha, que, vista daqui, não impressiona ninguém. Já estive lá num passeio em que ouvi histórias horripilantes, tirei fotos, vi muitos pássaros e até entrei numa das celas minúsculas, como turista obediente, para tentar imaginar a vida dos prisioneiros.
Olho para Alcatraz e penso nos homens que apodreceram lá dentro sonhando com o mundo aqui fora, e em toda a mitologia que se construiu em torno dessa ilha minúscula; mas penso, sobretudo, em como Alcatraz é uma relíquia de tempos em que a população carcerária cabia num lugar tão pequeno.
Penso também no alívio que é estar aqui, ainda que por três rápidos dias. O Brasil virou uma espécie de Alcatraz metafísico, um pesadelo contínuo do qual todos querem, se não fugir, pelo menos acordar. Ninguém aguenta mais tanta violência, tantas notícias ruins, tanta desesperança.
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Ninguém aguenta mais um governo que já está em frangalhos antes mesmo de começar. A foto de Bolsonaro vestido de moleton, camiseta pirata, chinelo Rider e paletó alheio é uma daquelas imagens que, quando vistas, não se podem desver. Daqui a muitos anos, quando conseguirmos olhar desapaixonadamente para os tempos que correm, ela vai funcionar como uma espécie de resumo deste reinado.
Os trajes do presidente não traduzem a “simplicidade” que ele almeja, apenas desmazelo e esculhambação. A sua postura nega qualquer descontração. Seus defensores foram rápidos nas redes sociais, lembrando todos os pontos e complicações da cirurgia por que passou; mas é perfeitamente possível ficar confortável sem ostentar tanta deselegância e tão pouco senso de respeito ao cargo.
O que as roupas de Bolsonaro dizem é que ele não tem a mínima ideia de onde está e da importância do seu emprego.
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Aliás, estou cada vez mais convencida de que o Bolsonaro que foi para a presidência não existe. Enquanto caminhava com as próprias pernas, Jair Bolsonaro era apenas um deputado do baixo clero, que provavelmente teria continuado na Câmara sem fazer nada até o fim da vida, chamando a atenção com pequenos escândalos sem grandes consequências.
O “mito” que cresceu nas redes e no imaginário popular é uma espécie de Dilma, a Gerentona, uma figura estruturada do nada a golpes de marketing.
Esse “mito” é, em boa medida, uma invenção dos filhos, que se apropriaram das suas redes sociais, souberam interpretar a insatisfação do eleitorado e lhe ofereceram o herói antitudoissoqueaíestá que desejava.
Por isso, não adianta imaginar que, em qualquer momento, os filhos se distanciarão politicamente dele, ou da sua conta no Twitter.
O Bolsonaro que foi eleito não existe. O Bolsonaro que existe não tem nem inteligência nem consistência para seguir adiante sozinho com a farsa.
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