O Sudão do Sul tem quase tanto tempo de independência como de guerra. À violência indescritível junta-se a fome que toca em quase metade da população e as doenças. Tudo em nome de uma luta pelo poder.
Aos 24 anos, Andrew Riek Wal conta à Reuters que já passou quase metade da sua vida num campo de refugiados. Foram dez anos no campo de Kakuma, no Norte do Quénia, até 2011, quando pôde finalmente regressar ao recém-independente Sudão do Sul — acabado de sair de uma longa guerra com o Sudão. Dois anos depois, Andrew voltava a Kakuma, novamente para fugir a uma guerra, desta vez no seio do seu novo país.
Prestes a fazer quatro anos como um país independente (a 9 de Julho), o Sudão do Sul está desde Dezembro de 2013 envolto numa guerra civil que, em nome de um jogo de rivalidades políticas entre antigos camaradas de armas, praticamente destruiu qualquer perspectiva viável para um futuro como nação. Dezenas de milhares de mortos e mutilados, cerca de 1,5 milhões de refugiados, metade da população em risco de fome, cidades transformadas em ruínas — o quadro é o mesmo há vários meses e são poucas as esperanças de que possa ser revertido.
“As pessoas no Sudão do Sul estão actualmente cercadas em três frentes: aumento da insegurança alimentar, escalada dos combates e uma deterioração rápida da situação económica que está a conduzir mais pessoas para a pobreza”, diz ao PÚBLICO Zlatko Gegic, director da Oxfam para o Sudão do Sul.
O capítulo mais recente do rosário de atrocidades cometidas na guerra civil sul-sudanesa foi divulgado recentemente pela UNICEF, depois de ter entrevistado sobreviventes da ofensiva do exército no estado petrolífero de Unity. Pelo menos 129 crianças foram mortas em vários ataques durante o mês de Maio. Mas há pormenores de especial crueldade e que impressionam mesmo quem, como o director-executivo da UNICEF, Anthony Lake, tem experiência com episódios do género, que definiu os actos de violência como “indescritíveis”.
Os rapazes eram castrados e abandonados para morrer, numa poça de sangue; antes de serem executadas, as raparigas eram violadas por grupos de soldados. Num dos casos, uma rapariga foi “morta porque os atacantes não conseguiam decidir quem iria violar a vítima primeiro”, contou o chefe de comunicação da UNICEF, Christopher Tidey. Noutras ocasiões, grupos de rapazes “foram amarrados e degolados”.
A execução das crianças é a forma encontrada pelos seus autores para impedir que as próximas gerações exerçam vingança no futuro, de acordo com as testemunhas ouvidas pela UNICEF. Os que são poupados têm como destino a incorporação forçada nas fileiras dos grupos armados — a ONU estima que existam cerca de 13 mil crianças-soldado a combater no Sudão do Sul.
Nação de refugiados
Nos últimos meses, a guerra obrigou cerca de 1,5 milhões de pessoas (de uma população total de onze milhões) a abandonarem as suas casas. Os responsáveis pelo campo de Kakuma esperavam poder fechar as portas, mas desde o final de 2013 já receberam 44 mil sul-sudaneses e as notícias de que está previsto um aumento para acomodar mais 80 mil pessoas indicam que a pressão não deverá ficar por aqui. A Etiópia e o Uganda, para além do Quénia, acolheram cerca de meio milhão de sul-sudaneses, de acordo com a ONU.
A grande maioria, porém, está deslocada dentro do próprio país. Cidades como Bentiu — capital do estado de Unity — são descritas como cidades fantasma, praticamente em ruínas. A verdadeira cidade mudou-se para uma base da ONU, que acolhe agora cerca de 46 mil pessoas, apesar de não estar preparada para servir de campo de refugiados. O mesmo se passa em Malakal, no Nordeste, onde as instalações da ONU receberam sete mil pessoas nos últimos dois meses e que contam agora com uma “população” superior a 30 mil habitantes, segundo The New York Times.
Estes complexos não estão preparados para receber refugiados e as condições sanitárias são muito precárias, com os campos a tornarem-se esgotos a céu aberto, notam os observadores. Mas fora deles, a violência generalizada revela uma alternativa que ninguém quer enfrentar.
A par da morte às mãos dos grupos armados, convive o fantasma da fome. As piores estimativas confirmaram-se e quase quatro milhões de pessoas estão em risco de enfrentar a escassez de alimentos. “Não é apenas que o Sudão do Sul tenha alguns dos indicadores de desenvolvimento humano mais baixos de todo o lado. Nem que já se tem 17 meses de violência muito brutal. É que também estamos no meio de uma depressão económica, e que, para ser claro, perto do colapso económico.” As palavras foram ditas há um mês por Toby Lanzer, que coordenava a missão da ONU no país até ter sido expulso pelo governo por proferir declarações “que não davam esperanças ao povo do Sudão do Sul”, segundo um porta-voz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário