Documentos do inquérito sobre o assassinato de Marielle Franco mostram que a Polícia Civil do Rio de Janeiro possui há um ano as planilhas com os registros de entrada de visitantes do condomínio onde o presidente Jair Bolsonaro tem casa e morou até se mudar para o Palácio do Planalto.
Os papéis contradizem recente versão do Ministério Público do Rio, segundo a qual o órgão só teve acesso aos documentos em 5 de outubro passado, quando afirma ter apreendido o material na portaria do condomínio no curso da investigação sobre o mandante do assassinato da vereadora.
A Divisão de Homicídios da polícia está em poder dos papéis ao menos desde novembro de 2018. Já a Promotoria foi informada desde março deste ano sobre a apreensão das planilhas.
Elas foram obtidas durante a investigação do caso, porque o policial militar aposentado Ronnie Lessa, acusado de ser o executor do crime, também mora no condomínio Vivendas da Barra, o mesmo de Bolsonaro.
Promotoras do MP-RJ, contudo, haviam afirmado em entrevista na semana passada que as planilhas só foram apreendidas em outubro, após Lessa e o ex-policial militar Élcio de Queiroz, outro réu no processo, terem confirmado que se encontraram no condomínio horas antes do assassinato da vereadora, em março de 2018.
A promotora que primeiro informou que a planilha não havia sido apreendida foi Carmen Carvalho. Ela se afastou do caso dois dias depois, quando vieram à tona fotos suas em apoio ao presidente Bolsonaro e aliados.
Apesar do acesso anterior às planilhas, ao menos desde março, somente em outubro os integrantes do MP-RJ procuraram o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, para saber se poderiam continuar a investigação depois de o nome do presidente da República ter aparecido na investigação —o aval do STF veio nesta segunda-feira (4).
Como revelado na semana passada pelo Jornal Nacional, uma das planilhas manuscritas indicava que o ex-PM Élcio tinha como destino a casa 58, a de Bolsonaro.
Ainda segundo a reportagem, um porteiro do condomínio declarou em depoimento à Polícia Civil em outubro que "seu Jair" autorizou a entrada de Élcio. Segundo o funcionário, ao notar que o carro se dirigia à casa 65/66, ele contatou novamente a casa 58 para confirmar a autorização. O mesmo interlocutor disse que sabia para onde iria o ex-PM.
Bolsonaro, contudo, estava na Câmara dos Deputados na hora em que o ex-PM entrou no condomínio. Gravação do interfone também indica, segundo perícia do Ministério Público, que a ligação foi feita para a casa 65/66 e a autorização de acesso foi dada por Ronnie Lessa.
Embora toda essa movimentação tenha ocorrido apenas no mês passado, a polícia apreendeu o controle de acesso ao condomínio em novembro de 2018. Já a análise do documento ocorreu até fevereiro.
A Divisão de Homicídios da Polícia Civil obteve na portaria planilhas de entrada de visitantes entre o fim de dezembro de 2017 e outubro de 2018 —as tabelas dividem os acessos de carro e de pedestres. Há ainda um arquivo de programa Excel no qual agentes da unidade transcreveram as informações dos papéis originais.
A transcrição, contudo, se deteve apenas às linhas que indicavam acesso à casa 65/66, de Ronnie, entre fevereiro e março de 2018 —a tabela eletrônica também traz informações na íntegra sobre os acessos ao condomínio em janeiro do ano passado.
O registro manuscrito da entrada de Élcio mostra que era possível identificá-lo na planilha original. Embora o nome esteja quase ilegível e a indicação da casa seja a 58, e não a do outro acusado, o modelo e a placa do carro usado para acessar o condomínio estão evidentes.
O Logan placa AGH 8202 está em nome da mulher de Élcio. O ex-PM, inclusive, declarou em janeiro deste ano na Delegacia de Homicídios, quando foi interrogado ainda em liberdade, que o usava para transitar pela cidade.
O processo não deixa claro em que circunstâncias essas planilhas foram apreendidas —não consta mandado de busca e apreensão para este fim. Os relatórios do processo que se referem a elas são de fevereiro. O delegado Giniton Lages também fez menção a elas no relatório final do inquérito, de março.
Sem identificar por sete meses a entrada de Élcio no condomínio, a análise da menção à casa de Bolsonaro só passou a ser alvo das autoridades após o interrogatório dos dois acusados, em que reconheceram ter se encontrado no condomínio no dia do crime.
Durante o interrogatório em 4 de outubro deste ano, Élcio foi questionado se frequentava outra casa no condomínio. Ele negou. Questionado se conhecia outro morador do local, disse que não, para depois afirmar apenas que sabia que o presidente vivia lá.
Ronnie Lessa também foi questionado sobre se frequentava a casa de outros moradores. Ele negou sem tecer outros comentários.
As promotoras do MP-RJ afirmaram também que, pouco antes do interrogatório, uma empresa privada conseguiu desbloquear os celulares de Lessa. Num deles foi encontrada uma mensagem de sua mulher com a foto da planilha na véspera do depoimento dos dois acusados na Divisão de Homicídios, quando ainda estavam em liberdade. Os dois foram presos preventivamente em março.
No dia seguinte à divulgação do depoimento do porteiro pelo Jornal Nacional, o Ministério Público divulgou uma perícia segundo a qual uma gravação do interfonema da portaria mostrou que quem autoriza a entrada de Élcio é Ronnie Lessa.
A Folha mostrou, contudo, que a análise não considerou a possibilidade que o sistema do computador da portaria do condomínio tenha sofrido algum tipo de alteração, como um arquivo deletado ou renomeado.
A perícia também não analisou se o porteiro da gravação em que Élcio é autorizado a entrar por Ronnie Lessa é o mesmo que prestou depoimento. De acordo com o jornal O Globo, perícia da Polícia Civil aponta se tratar de pessoas diferentes.
O que disse o porteiro, segundo a TV Globo? Em depoimento, o porteiro afirmou que Élcio de Queiroz, acusado pelo assassinato de Marielle e Anderson, chegou no dia do crime, 14.mar.18, ao condomínio em que Jair Bolsonaro tem casa, na Barra da Tijuca, e disse na portaria que iria à residência do então deputado. O porteiro interfonou para a casa 58 para confirmar se Élcio estava autorizado a entrar e identificou a pessoa que atendeu como “seu Jair”. O porteiro disse que acompanhou a movimentação nas câmeras de segurança e viu que, ao entrar, o carro de Élcio se dirigiu à casa 66. Lá morava Lessa, também acusado pela morte de Marielle. O porteiro ligou novamente para a casa 58 e a mesma pessoa, que ele identificou como “seu Jair”, disse que sabia para onde Élcio se dirigia.
Onde estava Bolsonaro nesse momento? Registros oficiais da Câmara apontam que Bolsonaro participou de votações na Casa às 14h e 20h30, em Brasília. Não podia, portanto, estar no Rio.
Por que o Ministério Público afirmou que o depoimento do porteiro é falso? No dia 30, um dia após a reportagem ir ao ar, o Ministério Público disse que a investigação teve acesso, antes da veiculação da reportagem, à planilha da portaria e às gravações do interfone e comprovou que o porteiro interfonou para a casa 65 (a residência de Lessa ocupa os números 65 e 66).
A entrada de Élcio foi autorizada por Lessa, de acordo com a gravação periciada. Contudo, o Ministério Público admitiu, na quinta (1º), que não considerou a possibilidade de adulteração dos registros e gravações, não averiguando se arquivos foram apagados ou renomeados antes de entregues à Justiça.
Bolsonaro e membros de sua família poderiam ter tido acesso às gravações? Segundo três advogados especializados em questões condominiais, qualquer morador teria o direito de escutar os áudios, mesmo que de outra casa, acompanhados por alguém da administração. De acordo com eles, é comum que imagens das câmeras sejam utilizadas para solucionar problemas menores, como um carro arranhado.
Caso membros da família Bolsonaro quisessem uma cópia das gravações, precisariam de ordem judicial ou de um termo assinado pelo condomínio. Um dos advogados entrevistados afirma ainda que Carlos Bolsonaro não descumpriu a lei divulgando no Twitter as gravações. Ainda assim, ao ceder imagens e gravações, o condômino geralmente assina um termo se comprometendo a manter o material na esfera privada. Bolsonaro negou ter feito cópia das gravações.
Jair ou Carlos obstruíram a Justiça ao acessar os áudios? Especialistas afirmam que não. A obstrução de Justiça teria ocorrido se alguém tivesse se apoderado das gravações originais antes de membros da investigação, impedindo o acesso à prova.
Existe alguma evidência de que membros da família Bolsonaro possam ter adulterado as gravações? Não. A perícia requisitada pelo Ministério Público concluiu que nenhuma gravação foi editada. Ela não esclarece, no entanto, se algum áudio pode ter sido apagado ou renomeado. Para isso, seria necessário periciar o computador onde as gravações são salvas.
Quando Bolsonaro ou familiares acessaram, pela 1ª vez, as gravações? Não se sabe. No sábado (2), Bolsonaro disse: “Pegamos antes que fosse adulterado, pegamos lá toda a memória da secretária eletrônica, que é guardada há mais de anos, a voz não é minha”.
Não ficou claro se ele se referia aos dois vídeos gravados por Carlos, nos quais ele reproduz os áudios da portaria.
Depois, Bolsonaro afirmou: “Não fizemos cópia de nada, não levamos a secretária eletrônica a lugar nenhum”. Questionados, a Presidência e o condomínio não responderam quando foi a primeira vez que qualquer membro da família escutou as gravações.
Já nesta terça-feira (5), em uma rede social, Bolsonaro disse: "Poderia consultar a qualquer época a secretária eletrônica, nada impede a qualquer morador tal procedimento, contudo só foi realizada tal consulta por mim depois de a TV Globo ter vazado um processo que estava em segredo de justiça".
Carlos estava acompanhado quando ouviu os áudios? Ele diz que está na administração, mas não é possível ver ou ouvir outra pessoa.
O condomínio possui sistema que transfere as ligações da portaria para o celular dos moradores?
A questão não foi respondida pela Presidência nem pela administração do local. Algumas outras casas do condomínio não possuem a tecnologia, mas não é possível afirmar que isso valha para a casa de Bolsonaro.
A questão não foi respondida pela Presidência nem pela administração do local. Algumas outras casas do condomínio não possuem a tecnologia, mas não é possível afirmar que isso valha para a casa de Bolsonaro.
Por que o MP-RJ não pediu a perícia do computador com as gravações da portaria? Questionado, o MP-RJ não respondeu.
O MP-RJ ainda tem a intenção de pedir a perícia do computador para checar se um arquivo foi renomeado ou apagado? Questionado, o MP-RJ não respondeu.
Por que a planilha não foi apreendida em março, quando Lessa foi preso? O Ministério Público afirma que policiais não encontraram referências à casa 65/66 na planilha, motivo pelo qual consideraram a prova sem relevância.
Contradição Embora sem referência à casa de Lessa, a planilha continha referência a Élcio, bem como à placa do carro em nome de sua mulher. Se apreendida, a investigação sobre como o ex-PM entrou no condomínio seria antecipada em quase sete meses.
Por que o circuito interno de vídeo do condomínio não foi apreendido no dia da prisão de Lessa? Nem o Ministério Público nem a polícia do Rio explicam.
Por que Elaine Lessa enviou ao marido uma foto da planilha em jan.19, dois dias antes de ele e Élcio prestarem depoimento? Segundo suspeita o Ministério Público, para avisar que a planilha não indicava a entrada de Élcio na casa de Lessa, o que permitia que em seus depoimentos eles negassem o encontro no dia do crime.
Se o condomínio tem vários porteiros, como a polícia chegou ao que prestou depoimento? Não se sabe.
Por que a perícia não comparou a voz do porteiro na gravação que autoriza a entrada de Élcio com aquele que prestou depoimento? O Ministério Público afirma que o objetivo da perícia foi comprovar que Lessa e Élcio se encontraram naquele dia.
O porteiro foi questionado sobre a contradição entre seu depoimento e o que consta das gravações apreendidas? Não se sabe.
O porteiro foi confrontado com o fato de Bolsonaro estar em Brasília no momento em que Élcio foi ao condomínio? Não se sabe.
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