domingo, 26 de agosto de 2018

Os brasileiros que se arriscaram para resgatar e proteger refugiados durante ataques em Pacaraima

Gedeão (no centro) ao lado da esposa, Sandra, e parte dos refugiados que receberam após ataques (Foto: Emily Costa/G1 RR)Na parede de um restaurante em Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, alguém deixou uma mensagem: 'somos todos migrantes'. Foi dessa cidade, no Norte de Roraima, que 1,2 mil refugiados venezuelanos foram expulsos sob um violento protesto de moradores. Uma história já contada em várias partes do mundo. Outra, que poucos sabiam até agora, é que naquele mesmo dia a atitude de brasileiros mudou a vida de 63 refugiados venezuelanos - 47 adultos e 16 criançaAo acordar naquela manhã de sábado, 18 de agosto, o pastor e a mulher, Sandra Vasconcelos, 37, notaram a agitação da cidade. Ouviram fogos de artfício, e chegaram a pensar que se tratava de uma inauguração. Pouco depois foram avisados sobre a manifestação dos moradores.
"Me disseram que a manifestação não estava mais pacífica, que estavam expulsando venezuelanos, colocando gasolina, queimando tudo. [...] quando cheguei lá ouvi dizerem 'vamos para o palco', e me preocupei, porque lá tinham crianças, famílias, que nós ajudavamos, evangelizávamos e dávamos comida. Corremos para o carro e fomos direto para lá".
Steven ao lado da mulher Rosana e dois dos três filhos: 'Estamos muitos agradecidos" (Foto: Alan Chaves/G1 RR)Steven ao lado da mulher Rosana e dois dos três filhos: 'Estamos muitos agradecidos" (Foto: Alan Chaves/G1 RR)
Steven ao lado da mulher Rosana e dois dos três filhos: 'Estamos muitos agradecidos" (Foto: Alan Chaves/G1 RR)
Um vídeo mostra o momento exato em que o palco do Micaraima, antes usado para shows e eventos, é destruído com um trator. Sob aplausos e comemorações de manifestantes revoltados com o assalto a um comerciante brasileiro - crime supostamente cometido por venezuelanos - um homem deixa o palco em ruínas. Depois, os pertences dos refugiados são banhados em gasolina e incinerados.
"Quando chegamos lá estavam a Força Nacional e alguns manifestantes. Conversei com o comandante, perguntei se poderia pegar as crianças que estavam lá embaixo do palco, disse que elas não tinham culpa. Ele disse ‘pastor, você pode pegar, sim, e rápido que a gente não sabe até quando a gente pode segurar esse povo’. Aí eu peguei, comecei a colocá-las no meu carro e na sequência eu liguei para a irmã, falei que estava tudo muito violento, e pedi ajuda”.
O resgate foi feito em partes, levou horas e aconteceu também pelo lado venezuelano da fronteira - o palco fica na divisa entre os dois países. Primeiro os brasileiros resgataram as crianças, depois os adultos. Até um cachorro foi salvo. No tumulto, filhos acabaram separados dos pais que corriam para tentar salvar alguns pertences.
“Ao longo do dia a gente foi escondido, entrando por trás, por dentro da Venezuela e resgatando crianças e adultos também. Foi uma correria”, relembra o pastor que também teve medo de ser alvo dos manifestantes. "Foram 63 pessoas que acolhemos ao todo. A compaixão venceu o medo".
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"Teve uma hora em que não aguentei. Todos choravam. As crianças, a missionária que me ajudava e eu", relembra Gedeão Vasconcelos, um ex-traficante e hoje pastor da igreja batista. "Tive que ter forças, pedir a Deus. Tem horas em que a gente não aguenta, é ser humano".
"Quem nos ajudou são pessoas de bom coração, muito diferente das pessoas que chegaram ao palco naquele dia, mas são todos brasileiros", diz Steven.
Em pouco tempo, a casa em que Gedeão e a esposa moram há três meses (e cedida pela igreja) se encheu. Outros venezuelanos que souberam do refúgio bateram à porta e foram acolhidos. Missionários ligados à igreja também abriram suas casas para abrigá-los e reuniram doações de roupas e alimentos.
“Tudo começou numa manifestação pacífica, boa, que tinha que acontecer, mas que acabou sendo muito violenta. Lá [no protesto] havia pessoas que tinham sido vítimas de venezuelanos. Assim como há brasileiros ruins, bandidos, também têm venezuelanos maus, bandidos, que fizeram coisas más em Pacaraima, mas não se pode generalizar".
Diana Perez, 19, e a tia Yusbeli Bolivar, 33, encontrariam abrigo e proteção na igreja."Saímos correndo para cá e nos deram refúgio. Abriram as portas para nós”, contam.
Rastro de destruição no palco do Micaraima: 79 venezuelanos viviam lá até o sábado (18) (Foto: Alan Chaves/G1 RR)"Eu diria que, não é que eles [manifestantes] tenham razão, mas eles sentiram ira porque em vez de vir procurar trabalho, alguns [venezuelanos] vieram roubar. Não compactuo e nunca agiria dessa forma", lamenta Diana, que chora ao lembrar da mãe e do sobrinho que ainda vivem na Venezuela. "Me preocupo muito com eles".
"Assim como existem pessoas inocentes, sobretudo as crianças, há também os culpados. Eu peço a Deus para que tudo volte ao normal e tenham misericórdia de nós”, diz Diana.
Natália Cardoso, uma das missionárias que ajudou no acolhimento dos venezuelanos, viajou de Boa Vista a Pacaraima levando doações para os refugiados.
"Foi muito impactante chegar na igreja e encontrar as crianças e os familiares. Eles ainda estavam um pouco abalados, assustados, mas a gente pode ver que eles sentiam que já estavam em segurança. Encontrei amor e acolhimento lá".

Cenário de guerra

Debaixo da estrutura de metal do palco do Micaraima, ao menos 79 venezuelanos viviam acampados. As condições eram precárias. Não tinham banheiros e nem água encanada. Havia mulheres grávidas e até bebês.
"Viviam ali como bichos, andavam abaixados porque o 'teto' era baixo. Comiam coisas do lixo, e passavam fome", relatam Gedeão e a esposa, que, junto com outros membros da igreja, costumavam distribuir refeições e evangelizar, principalmente, as crianças.
"Aos 13 anos vivi em um lixão, e passei fome, sei o quanto ela dói", relembra Sandra.
Em parede de restaurante, um rabisco chama atenção (Foto: Emily Costa/G1 RR)Em parede de restaurante, um rabisco chama atenção (Foto: Emily Costa/G1 RR)Em parede de restaurante, um rabisco chama atenção (Foto: Emily Costa/G1 RR)
Hoje, o palco mais parece um cenário de guerra: uma boneca de plástico sem roupas e com os cabelos desgrenhados, roupas queimadas e até uma fralda. São as pistas de que um dia lá já houve vida - apesar de em condições precárias.
"As pessoas descarregam sua dor, seu sofrimento em cima de outras coisas. Elas não direcionam para o que é de direito. Ela vai lá para o mais pobre, para o mais vulnerável. É preciso cobrar para quem é de direito, que são os gestores, os governantes", avalia Francilene Rodrigues, professora e pesquisadora da UFRR, acerca do protesto em Pacaraima.
Para ela, os ataques na fronteira foram uma expressão de 'muita xenofobia' estimulada e alimentada pelo discurso anti-migração defendido por políticos das eferas municipal, estadual e federal.
"Roraima é feita de migrantes. Para cá vieram os maranhenses, os cearenses fugindo da seca. As pessoas estão esquecendo de onde elas vieram e por que elas vieram".

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